Elena Ferrante mais uma vez na Netflix: A vida mentirosa dos adultos

Elena Ferrante mais uma vez na Netflix: A vida mentirosa dos adultos

Vittoria e Giovanna, intepretadas pelas atrizes Valeria Golino e Giordana Marengo (respectivamente). Foto: reprodução Netflix.

 

Pouco de Netflix, bastante de Elena Ferrante: assim eu resumiria, em poucas palavras, a adaptação do romance mais recente lançado até então pela escritora italiana fenômeno entre crítica e público em vários países do mundo, A vida mentirosa dos adultos.

Atenção: o texto abaixo pode conter spoilers sobre a série, o livro ou ambos. Mas nada tão pormenorizado que possa estragar a sua experiência com qualquer um desses produtos culturais.

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Primeiro eu quero esclarecer que, quando eu digo que a série tem “pouco de Netflix” e “bastante de Elena Ferrante”, não quero que você me imagine como mais uma daquelas pessoas com óculos na ponta do nariz, altiva, superior, de salto-alto-cultural, etc. (embora eu use, sim, óculos, e ele quase sempre escorregue para a ponta do meu nariz). A questão de ser “pouco Netflix” é que essa não é uma série de hype. Não é/está sendo uma série viralizável, com conteúdo sendo replicado em sites e páginas de redes sociais de vários nichos. Na verdade, fora da bolha ferranter, eu quase nada vi sobre a série. Nem a conta da Netflix BR tem postado sobre a série. Isso, obviamente, não é um ponto a favor ou contra à Vida mentirosa dos adultos, mas sim um ponto passível de discussão.

Esclarecimentos iniciais feitos, vou destacar, abaixo, alguns pontos sobre a adaptação no geral; os que mais me chamaram a atenção. A partir daqui, ressalto mais uma vez, posso dar alguns spoilers!⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

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A vida mentirosa dos adultos é uma história sobre a chegada à vida adulta. Essa chegada, no entanto, não é suave, nem informa quando e onde acontecerá. É ríspida, no chute, como se Giovanna, a protagonista, fosse retirada do seu brinquedo favorito no parque de diversões aos tapas e berros. Quem vai acabar fazendo a mediação desse trauma, ser o vetor que a conduzirá para fora da infância, é sua tia, Vittoria, que não fará isso de uma forma exatamente doce, meiga. Mesmo assim, será com amor honesto. Até na mentira.

O primeiro tranco na vida perfeita da jovem é quando ela ouve, meio que sem querer, o pai falando que ela estava ficando feia. Mas não uma feiura qualquer. Feia como a irmã dele, Vittoria. Um julgamento, portanto, que vai além da aparência, engloba, também, o comportamento. Giovanna, como podemos julgar, é repleta de todas aquelas imaturidades adolescentes que formam o nosso caráter adulto, incluindo o desejo de autodegradação. Ela se assusta ao se perceber em uma vida, uma história, que não reconhece, que não é dela. E esse mundo é muito diferente do mundo seguro que ela conhecia.

 

“Giannì, se quiser crescer, se quiser ser uma mulher, tem que bater a cabeça, tem que se machucar. Se não você sempre será uma criança, como sua mãe, como seu pai. Como todos os perdedores daqui.”

 

Giovanna é de uma família da esquerda acadêmica, gente de muita teoria e pouca ação. Ela vai perceber isso ao observar mais de perto os pais, como a tia a instrui, e ao ver as origens do pai de perto. Ainda nesse ponto, achei interessante a série mostrar o quanto de liberdade pais progressistas são capazes de suportar nos filhos. A crítica a esse modo de vida familiar, as contradições, enfim à esquerda burguesa, são mais acentuadas na série que no livro. Mais acentuada, também, é a percepção da falsidade e da crueldade nas relações entre mulheres (burguesas), muito mais que entre homens (os intelectuais, “civilizados”). Através da tia ignorante é que Giovanna vai conhecer outro tipo de gente, os que geralmente levam a fama por esses estereótipos: pobres, desocupados, trabalhadores diversos, travestis… Ela mesma, ao relatar a experiência às amigas, reflete: “parece um lugar sujo, mas é só pobre.”

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Comparando as duas adaptações de livros da Ferrante feitas para a Netflix (a resenha de A filha perdida você lê aqui), A vida mentirosa dos adultos além de ter mais tempo para mostrar a que veio, tem o fator da língua como acerto fundamental. Porque Ferrante tem que ser em italiano! Até assistimos em inglês, mas as línguas latinas, obviamente na nossa percepção de língua de origem, comunicam muito melhor a paixão e a violência aos nossos ouvidos. Os livros de Elena Ferrante deviam ser sempre filmados em italiano!
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Agora, comparando com a história da tetralogia (livro ou série), é interessante observar o ponto de partida escolhido pela autora. Em A amiga genialLila e Lenu têm uma vida bruta desde sempre, deste modo não há uma passagem tão marcada para a adolescência além das mudanças físicas e a obrigação de ganhar a vida o quanto antes, seja pelo matrimônio ou pelos estudos. Em A vida mentirosa dos adultos Ferrante coloca a protagonista em uma boa família, bom bairro, boa escola, boas relações. Enquanto a dupla genial precisa sair do bairro algumas vezes para alcançar a superfície, Giovanna faz um mergulho. Assim, elas percorrem caminhos opostos na direção delas mesmas.
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A adaptação renderia várias postagens, mas basta terminar dizendo que a participação de Ferrante como uma das roteiristas talvez tenha feito, sim, diferença no resultado. A vida mentirosa dos adultos é uma boa série. Algumas das cenas acrescentadas e suprimidas contribuíram na tentativa de equilibrar a fidelidade ao texto do romance e os recursos do novo suporte e tudo aquilo que ele pôde agregar à história. Talvez a série tenha sido fiel demais ao romance, o que pode amornar a experiência dos leitores. De todo modo, assisti tudo numa tacada só.

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“Por que mentiu pra mim?
Porque era belo.”
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Para ouvir: podcast Perdidos na estante, com participação minha e da Amanda Barreiro!

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