[Intertexto] A entrada na guerra, de Italo Calvino e Crônicas de Sebastopol, de Tolstói
O cerco de Sebastopol, por Adolphe Yvon
Inauguramos com este texto nossa modalidade “Intertexto”. Não que outras resenhas publicadas (passadas e futuras) não apresentem conteúdo semelhante. Posso apostar que quase todas fazem referências a outros textos, pois é assim que a literatura funciona. E, é claro, este texto aí de baixo também é um pouco de resenha, mas seu objetivo primordial é despertar a curiosidade para a leitura das obras comparadas. O motivo, que fique estabelecido, é estritamente um achismo, uma memória ou qualquer outra coisa que tenha despertado no autor deste post o desejo de ligar os pontos das leituras.
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A entrada na guerra (Companhia das Letras, 2023), de Italo Calvino, é um conjunto de três histórias que narram, de maneira ficcional, a vida do autor em sua adolescência no início da Segunda Guerra Mundial. O próprio Calvino disse a respeito da obra que ela
“trata da transição da adolescência para a juventude e da transição da paz para a guerra”
Os três contos: A entrada na guerra, Os vanguardistas em Menton e As noites da Unpa são narrados em primeira pessoa pelo autor-personagem e se vinculam numa unidade de sentido por pintarem o quadro do início dos efeitos de devastação do grande conflito que dilacerou a Europa em meados do século XX. Não apenas os efeitos físicos da destruição, como contados em Os vanguardistas em Menton, cidade da Côte d’Azur francesa, fronteiriça à Itália, mas as fragmentações sociais de A entrada na guerra, provocadas pela necessidade de fuga, de abandono e de deslocamento daqueles a quem a guerra foi invadir as casas, e, como sabemos todos, a tragédia humana dos milhões de vidas precocemente ceifadas direta ou indiretamente pelo conflito.
Em As noites da Unpa, vemos o protagonista como um sentinela da União Nacional de Proteção de Antiaérea, uma organização fundada em 1934 pelo regime fascista. Calvino, que no futuro seria durante muito tempo membro do Partido Comunista, embora não demonstre nesse texto inclinação às ideias fascistas, não faz discursos enfáticos sobre o papel do regime de Mussolini na geopolítica europeia.
É perfeitamente compreensível que um jovem de 16, 17 anos, tomado no turbilhão de uma guerra, tente seguir o fluxo dos acontecimentos das melhores formas possíveis, tentando viver as experiências juvenis comuns de uma vida comum. Ainda assim, é possível perceber nos textos um jovem Calvino com alguma inquietação interior. Em certos episódios, em que seus companheiros dedicam-se a amealhar butins nos destroços de Menton ou se divertirem com prostitutas, o protagonista afasta-se para se recolher à contemplação do mar, para pensar coisas diversas daquele mundo caótico, para se aproximar emocionalmente do seu pai.
A escrita é um estilo mais sóbrio, de um adulto que recorda o passado e um tempo, cujo êxtase obrigatório da juventude de um rapaz sem grandes dificuldades materiais, foi perpassado por sombras e incertezas.
Falando do intertexto, A entrada na guerra me trouxe à lembrança as Crônicas de Sebastopol: três narrativas de Tolstói sobre a Guerra da Crimeia (1853 – 1856), as quais li no Volume I dos Contos Completos (Cosac Naify, 2015). O autor participou ativamente do conflito, descrevendo-o sob a ótica de quem o viu de dentro. Diferentemente dos textos de Calvino, Tolstói vivenciou e narrou situações mais intensas, como a destruição de cidades e a dilaceração dos soldados nas batalhas. Por isso mesmo, é possível ver, nas Crônicas, uma postura incisiva do autor contra as misérias da guerra.
Compre na Amazon: A entrada na guerra, de Italo Calvino. Companhia das Letras, 2023, 96 páginas.
Compre também: Contos de Sebastopol, de Liev Tolstói. Editora Hedra, 2012, 160 páginas.