[Resenha] Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso
Romance responsável por abalar o meio literário brasileiro quando publicado pela primeira vez, em 1959, Crônica da casa assassinada conta a história de uma família em decadência: cada geração se vê mais pobre que a anterior, dilapidando o patrimônio para sobreviver. Os Meneses, porém, continuam sendo respeitados na pequena comunidade mineira em que vivem. A Chácara, casa imponente que gera orgulho mas também aprisiona, é vista com reverência e desconfiança por todos que conhecem o clã.
Escrever qualquer coisa sobre Crônica da casa assassinada é um desafio tal que nos intimidamos, de saída, a tirar da mente todas as sensações que o romance nos provoca e transpô-las em palavras no papel ou na tela do computador. É um livro que assusta a nós, pequenos e despretensiosos resenhistas de província, que imaginamos sempre diante de tais monumentos literários não haver muito mais a dizer que possa interessar a quem digita o título do livro no seu browser. Mas sem conter o desejo de compartilhar a experiência, deixamos de lado a síndrome do impostor (que nunca deve prosperar, aliás), tendo o cuidado para não incorrermos na da impostura, oferecendo àqueles que venham a empenhar seu precioso tempo em nos ler a pintura de um quadro que de perto seja apenas um borrão.
Pois sendo assim, o que podemos afirmar, sem o temor do julgamento, é que Crônica da casa assassinada proporciona a quem o lê uma experiência estética condizente com tudo aquilo que encontramos por aí a respeito do livro. Ocuparíamos aqui um espaço enorme para enumerar tudo o que se destaca no texto. Sem falar na capacidade analítica necessária para poder dar conta de um panorama tão abrangente da obra.
Para ficarmos apenas num terreno não tão seguro, mas pelo menos em espaço diminuto, queremos nos orientar nas palavras adiante pela defesa de um ponto de vista que pode parecer estranho para os leitores da prosa de grande volume e densidade: na narrativa de Crônica da casa assassinada os fatos importam menos. É curioso e talvez criminoso fazer tal afirmação, mas o leitor saberá compreender por que dizemos algo de aparente absurdo. Obviamente, o ponto de vista que estamos defendendo não é excludente em relação à relevância das ações na narrativa. Afinal, sem enredo não há romance.
Ocorre que em Crônica da casa assassinada dois elementos se destacam: a casa, não em seu aspecto físico em si, mas o que ela representa como símbolo de uma aristocracia, especialmente uma aristocracia rural de Minas Gerais, com seus hábitos de comedimento e autorrepressão; o catolicismo, às vezes carola, e outras tantas coisas, apenas ornamentos a disfarçar a hipocrisia. O próprio Lúcio Cardoso chegou a dizer que o livro era um libelo contra essa sociedade, esses costumes arcaicos. É bom que se diga que no livro essa aristocracia vive apenas de majestade, já que sua coroa e sua fortuna se perderam no tempo. Os Meneses, que não perdem ocasião de ressaltar o nome como fosse o título nobiliárquico que os sustinha em posição de destaque e privilégio, são, ao tempo em que se passa a trama, os restos empobrecidos, endividados e em processo de total aniquilação de uma família antiga, que desfrutara de prestígio e sobretudo de riqueza em tempos mais remotos.
É daquela época que emerge na história a figura de uma ancestral Meneses. Uma mulher com comportamentos não usuais, especialmente o modo masculino de se trajar. Descreve-se que ela cavalgava melhor do que os mais habilidosos cavaleiros e que saía em sua montaria a vergastar escravos que encontrasse pelo caminho, tendo à mão o seu chicote de cabo de ouro. Essa figura é aquela que talvez represente o ponto de inflexão na história dos Meneses. Talvez o começo de sua ruína, aos olhos daqueles familiares mais conservadores. Essa figura distante encontrará um duplo ao tempo da narrativa. Uma personagem que representa ou quer representar o abalo dos alicerces da casa (ou seja, daquilo que ela representa como símbolo). Um dos irmãos Meneses, encerrado em um dos quartos da casa, é a fissura estancada nos limites de sua clausura. Como hábeis engenheiros, os outros membros da família valem-se desse estratagema para evitar que aquele irmão de excêntricas maneiras (esse é o sentido, embora as palavras do romance possam não ser exatamente essas) estremeça de uma vez por todas as estruturas daquela ermida decadente. Mas essa contenção só faz crescer nessa personagem o ódio por aquela família e o desejo de destruí-la para sempre.
Será, no entanto, uma jovem carioca, esposa um tanto incidental de um dos irmãos, que trará consigo o sismo mais perigoso àquela fortaleza de antigas tradições. Sua figura fugidia, amada, adorada e odiada percorrerá toda a história sem deixar a certeza de a termos conhecido por completo.
Dissemos ali atrás que os fatos importam menos, e isso porque dois elementos se destacavam. Claro, há muitos mais. O destaque é nosso. O segundo elemento é a psicologia das personagens (do próprio romance). É no espaço psicológico que reside a grande força de Crônica da casa assassinada. O livro é composto por várias vozes narrativas que contam a história em diários, depoimentos, confissões, cartas que os destinatários não receberam. Seus autores são personagens principais e secundárias (figurantes, poderíamos dizer). Mesmo a ausência de uma das personagens entre as que contam a história revela-se como fundamental à construção do enredo e concilia-se perfeitamente com o seu caráter. Esse modelo narrativo induz a que as personagens deem vazão ao desvelamento de seu interior, dos sentimentos mais recônditos e hediondos, além de conceder espaço largo à dubiedade e à contradição entre aquilo que é contado pelos diferentes pontos de vista dos atores da trama. Ao conceder a liberdade do segredo a suas personagens (pois, como dissemos, a narrativa é feita de diários, confissões e cartas não entregues), o autor as faz confessarem sua sordidez, seu sofrimento, sua hipocrisia, exceto naqueles casos em que a penumbra do caráter seja exatamente o efeito pretendido para jogar a nós leitores de um para outro lado, a percorrermos o terreno insólito das hipóteses e das adivinhações da trama.
Além de tudo isso, não há como escapar de falar da linguagem do livro, da matéria própria da literatura que são as palavras e a técnica de organizá-las de tal modo que as transforme em arte. Não por acaso, Chico Felitti incia o prefácio da obra com a seguinte sentença: “Crônica da casa assassinada começa com uma cena que poderia ser uma estátua renascentista mas que é feita de palavras.” O livro é grande. Na nossa edição, publicada pela Companhia das Letras em 2021, a história termina na página 546. No entanto, sua leitura flui do início ao fim, prazerosa. Os longos períodos, de aparente prolixia, são muito mais que signos e significantes, muito mais que necessários à expressão da psique das personagens, são experiências estéticas representadas por um vocabulário rico e preciso em sua escolha e em seu encadeamento em cada frase.
Bom, vamos encerrando por aqui. Como disse no início, nada do que fosse escrito neste texto seria suficiente para descrever minimamente bem o que é a Crônica da casa assassinada. Uma busca rápida na internet mostrará que o romance tem sido objeto de muitos estudos sobre o mais diversos temas, dada a sua amplitude de abordagens.
Para despertar a curiosidade de quem ainda não leu e apresentar mais uma prova de que os fatos importam menos em Crônica da casa assassinada, o próprio Lúcio Cardoso nos dá uma informação bombástica no primeiro capítulo. E eu pensei quando li: ah, Lúcio, se está me contando isso agora, já, o que não terá pela frente?
Título: Crônica da casa assassinada
Autor: Lúcio Cardoso
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 560
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Quero ler!
E há uma estratégia muito sutil do autor. Parece que, como leitores e observadores do alheio, somos melhor preparados pra julgar os atos alheios que para julgar pensamentos alheios – os atos alheios, mesmo se só narrados, têm potencial de nos atingir, envolver ou influenciar a realidade. Já os pensamentos, se restritos à cabeça do outro…
Se Lúcio Cardoso narrasse ele próprio a relação da Nina e do filho, teria sido preso. Mas como sabemos de tudo diretamente de dentro da mente do filho, podemos superar nosso preconceito e seguir na leitura moralmente incólumes.
E há que se pontuar que a estrutura narrativa, ao optar por confissões desautorizadas, apela a nossa natural e irrefreável curiosidade sobre os podres dos ricos e poderosos.
Sob essa ótica, Lúcio Cardoso golpeia a hipocrisia por duas frentes: a da família tradicional, ao expô-la, e a nossa: porque por mais que critiquemos a moral das personagens, tiramos imenso prazer em compactuar com ela – ou coparticipar – através da leitura.
Obrigado, Gilson, pelo comentário. O detalhe que você acrescenta sobre “seguir na leitura moralmente incólumes” é muito preciso.
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