Sinopse: Com ceticismo e sarcasmo, o poeta alia verve ao rigor da forma fixa em um de seus livros mais mordazes ― e em muitos momentos retrata diretamente os dias que correm, pautados pela fé cega e pelo desprezo pela racionalidade.
“Este é um espetáculo extraordinário de precisão e inventividade. Nada sobra, e tudo surpreende. […] O coloquialismo amalgamado à dicção intelectual (recurso no qual se tornou mestre) […]. A capacidade de desenvolver uma ideia (alô, João Cabral, Wallace Stevens!) como quem constrói, tijolo por tijolo, um edifício. Só para depois, por pura curtição, botá-lo abaixo.” Fabrício Corsaletti.
Título lançado pela Companhia das Letras neste 2022, Fim de verão, de Paulo Henriques Britto é uma obra poética de primeira prateleira. São 26 composições listadas no sumário, que têm a especial circunstância de se dividirem entre duas línguas: o português e o inglês, inclusive com alguns poemas versados nos dois idiomas.
Anacruse, poema que abre o livro, serve ao mesmo tempo como espécie de prólogo. Num jogo metalinguístico, o poema faz uma advertência ao que pretensamente será encontrado nas páginas seguintes. Digo pretensamente, pois, em tom de humildade, nos diz o autor que a poesia que veremos é “pobre em imagens; pouco musical”, e isso não condiz com o que lemos. Aliás, fugindo do gosto contemporâneo pelo verso livre, Britto nos deleita com musicalidade e belas rimas, muitas das quais extraídas de combinações entre um vocabulário intelectualizado e expressões ditas populares, engastadas de tal forma que o texto flui sem estranheza. Outra advertência é dizer que a poesia é “indiferente ao que é sublime e nobre”. Se ao tratar dos “mesmos velhos temas” ela evoca a existência em seu sentido profundo; trata em metáfora (ou nem tanto) do momento sociopolítico brasileiro e seu fetichismo fascista, como se pode crer que não há algo sublime em tais versos?
Mas o poema-prólogo tem razão ao dizer que a poesia é “sarcástica”. E, no geral, de um sarcasmo escamoteado em versos de encantadora imagética, como em “Fim de verão”, poema que nomeia o livro, e que nos situa neste momento histórico “deste verão que já ninguém aguenta”.
Em “Vers de circonstance, I – IMUNIDADE DE REBANHO”, Britto é mais contundente, mais francamente mordaz, em sua denúncia da estupidez e de suas nefastas consequências: “(…) A ignorância é o sumo bem dos cidadãos de bem (…)”. É uma descrição da tragédia que se abateu sobre nós com a pandemia de Covid-19, reforçada pelo negacionismo científico que prejudicou a todos, incluindo os próprios negacionistas.
(…) Olhai / as vacas do campo: não lhes faz falta a ciência, / pastam em plena bem-aventurança, / sem que nenhuma antevisão do matadouro / perturbe a santa paz da ruminança.
Não é demais destacar a apropriação do texto bíblico, ao mesmo tempo paródica e parafrásica, já que o gado (que aqui não é propriamente o Bos taurus), como os lírios, não agem por vias racionais.
Além dos poemas compostos originalmente em língua inglesa, o poeta nos traz “Três traduções e treze variações sobre um poema de Emily Dickinson”. Tanto o original quanto as versões dialogam diretamente com a atualidade brasileira sob o aspecto do tensionamento entre ciência e crença.
Fim de verão é uma pequena e potente obra que, para além da qualidade intrínseca de seus versos, demarca em seu conteúdo um momento relevante do país e do mundo.
Título: Fim de verão
Autor: Paulo Henriques Britto
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2022
Páginas: 96
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