[Resenha] O Mágico, de Colm Tóibín
Crescendo entre os privilégios burgueses da Alemanha do início do século XX, o jovem Thomas Mann começa, não sem dificuldades, a embarcar na carreira literária. Sua sensibilidade artística é acompanhada por uma forma intensa e apaixonada de vivenciar as relações. O casamento com Katia ― herdeira de uma rica família judia de Munique ― parece apaziguar as energias criativas de Mann, trazendo-lhe seis filhos e uma estrutura doméstica que o desviava do estigma que à época sua homossexualidade atrairia.
Não poderia ser sem constrangimento que começaria a escrever umas poucas impressões sobre este fantástico romance biográfico do escritor irlandês Colm Tóibín. A origem desse sentimento está no fato de que o livro de Tóibín trata de uma das mais proeminentes personalidades da literatura ocidental do século XX: Thomas Mann. Salvo engano, não me lembro de ter lido sequer um conto do autor. Morte em Veneza, que tenho por aqui numa edição de bolso, já foi iniciado em algum momento inadequado e, claro, não passei de umas três ou quatro páginas.
Já que falei de um dos livros de Mann, é importante dizer que O Mágico (Companhia das Letras, 2023) descreve, sem muitas revelações, a bibliografia do escritor alemão. Portanto, para quem ainda não leu nada ou quase nada dele, não terá as expectativas das suas futuras leituras comprometidas.
A trajetória de Thomas Mann começa na cidade de Lübeck, litoral norte da Alemanha, onde seu pai era um abastado comerciante e senador. Sua mãe Julia era brasileira (de pai alemão), e chegou ao país germânico por volta dos seis anos de idade, deixando para trás as estrelas de Paraty, no estado do Rio de Janeiro. Algum tempo depois da morte do pai, a família troca a cidade natal de Thomas por Munique, onde ele passará boa parte de sua vida. Como romancista, sua estreia deu-se em 1899, ainda aos 24 anos, com a publicação de Os Buddenbrook. Apenas 25 anos mais tarde é que apareceria sua obra mais conhecida: A Montanha Mágica, que, certamente, teve significativo peso no prêmio Nobel de Literatura de 1929, concedido a ele.
A biografia escrita por Tóibín buscou explorar uma faceta de Thomas que figura no campo especulativo. Escritor respeitado, circunspecto pai de seis filhos, frutos de uma união de mais de 50 anos sua esposa Katharina Pringsheim (Katia), Mann teria reprimido durante toda a vida a sua homossexualidade. São, inclusive, no romance, as passagens que tratam dos afetos e das supostas relações homoafetivas os pontos mais altos. É nesses fragmentos que o autor sai do tom puramente narrativo e jornalístico, como quando fala da fuga do nazismo, para imprimir à história uma densidade existencial, mostrada pelo conflito interno de um homem que soube, desde sempre, que seu projeto de vida como um escritor respeitado, orbitando nos grandes círculos sociais, era incompatível com sua sexualidade fora do padrão hétero-normativo.
Na primeira estrofe, Thomas escrevia sobre como seu amado falava de música com eloquência. E, na estrofe seguinte, descrevia-o falando de poesia. Na estrofe final, anotava que o objeto de sua afeição combinava a beleza da música e da poesia em sua voz e em seus olhos.
Ao longo dos seus 80 anos, Thomas Mann viveu em diáspora frequente: dentro do seu país, da Europa e cruzando o Atlântico para se refugiar nos Estados Unidos. Tóibín reconstrói com maestria a vida desse grande escritor, a qual, apesar dos percalços e fugas, manteve uma rotina constante de quatro horas diárias dedicadas à escrita no sagrado recinto de seu escritório. Sempre em contato com a cultura erudita, o escritor foi, sobretudo, um apreciador da música de concerto, tendo, inclusive, conhecido pessoalmente alguns renomados compositores do gênero, como Gustav Mahler e Arnold Schönberg. Este último, aliás, em quem se inspirou para compor o seu Doutor Fausto. Mann valia-se com certa regularidade desse expediente de replicar em seus personagens circunstâncias de pessoas de seu círculo (e até dele próprio), fazendo-o de forma tão ostensiva ao ponto de gerar discórdia entre alguns dos que eram representados.
Para quem ainda não leu nada do protagonista do romance-biografia, pode ser uma boa ideia começar a entendê-lo por essa obra. Conhecer a vida de Thomas Mann, ainda que de forma ficcionalizada, pode nos ajudar a encontrar o tom exato para iniciar Morte em Veneza ou suas outras obras mais densas.
Título: O Mágico
Autor: Colm Tóibín
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2023
Páginas: 544
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