[Resenha] Os pescadores, de Chigozie Obioma
Sinopse: “Finalista do Man Booker Prize, Chigozie Obioma conquistou a crítica e o público com a história de uma família que teve seu destino transformado por uma profecia Os irmãos Ikenna, Boja, Obembe e Benjamin vivem com seus pais na cidade de Akure, na Nigéria. Quando o Banco Central transfere o pai, James Agwu, para Yola, ele decide se mudar sozinho por considerar a região perigosa. Os meninos, acostumados à disciplina rígida, experimentam uma liberdade até então desconhecida. Desafiando os limites, eles vão pescar em um rio considerado amaldiçoado e essa travessura mudará completamente os rumos de suas vidas. Com seu romance de estreia, Chigozie Obioma foi um dos finalistas do Man Booker Prize, um dos mais importantes prêmios literários internacionais, e é considerado umas das vozes mais interessantes da literatura africana contemporânea pelo The New Tork Times e pelo Guardian. Os pescadores conquista os leitores ao misturar habilmente a história da família Agwu e as reviravoltas pelas quais a Nigéria passou durante a década de 1990. Enquanto um pai rigoroso planeja um futuro promissor para os filhos e exige que estudem para se tornar piloto, médico, advogado e professor, os nigerianos acreditavam que as eleições de 1993 seriam o início de um governo democrático que modernizaria o país. Uma profecia interferiu nos planos de James Agwu para seus filhos. E os militares retomaram o controle da Nigéria meses depois das eleições. Um dia, voltando do rio, os meninos encontram Abulu, um louco conhecido por profetizar desgraças. Ele prevê que Ikenna será morto por um pescador. O primogênito conclui que será morto por um de seus irmãos e, aos poucos, se torna uma pessoa sombria. A história evoca os mitos, nos quais os personagens mesmo sabendo de seu destino trágico, não conseguem evitá-lo. Ao se afastar de sua família, Ikenna caminha, sem perceber, em direção ao sofrimento. Narrado pelo quarto irmão, Benjamin, Os pescadores é uma história cativante sobre a perda da inocência, o amor fraterno e sobre como determinadas tragédias não podem ser evitadas.”
Quando nos chega às mãos um livro da literatura nigeriana, imediatamente nos lembramos de referências importantes, como Chimamanda Ngozi Adichie, para falar de um nome da atualidade, e Chinua Achebe, autor do grande clássico O mundo se despedaça, ótima versão em português do título original Things Fall Apart.
Os pescadores, de Chigozie Obioma, jovem escritor nigeriano radicado nos Estados Unidos, merece os vários elogios impressos na capa e na contracapa da edição brasileira da Globo Livros, 2015.
Porém, várias das menções encomiásticas são superlativas, gerando expectativas em leitores pouco habituados às estratégias mercadológicas das casas editoriais em conjunto com os veículos de comunicação que reproduzem as críticas, em certos casos, desmedidamente positivas. O Guardian, por exemplo, classifica o livro como “um romance único”. Óbvio. Todos os livros são diferentes, ainda que tratem de tempos, lugares, pessoas e temas semelhantes. O New York Times vai além ao dizer que se trata da “mais humana história já contada sobre a África”. Eu, que não li praticamente nada de literatura africana, posso assegurar que isso é um exagero descabido e que atribui ao livro uma responsabilidade para com o leitor que a obra não tem.
Não se deixem enganar pelos superlativos. Tampouco os ignorem. Como disse, Os pescadores merece as deferências a ele atribuídas, devidamente aparadas dos exageros mercantilistas.
Mas, à parte os elogios jornalísticos, encontra-se o de Eleanor Catton, escritora canadense-neozelandesa, vencedora do Booker Prize e autora do romance Os Luminares (na lista de leitura há algum tempo). Catton classifica o Romance como mítico, e não sei se seria para tanto, considerando a escala de valores que atribuímos aos adjetivos. Lição que aprendi de Suassuna, que dizia: “se eu gastar o adjetivo ‘gênio’ com o Chimbinha, o que é que eu vou usar pra falar de Mozart, de Beethoven?”. Pois bem, Os pescadores é um livro excelente, mas não sei se poderá alcançar o livro de Achebe, cuja referência é evidente no texto de Obioma.
Sobre o livro em si, ele conta a história de uma família de seis irmãos e de seus pais, James e Paulina Agwu. Especialmente as aventuras e desventuras dos quatro irmãos mais velhos, com idades entre 9 e 15 anos, os pescadores.
Tudo começa quando o rígido pai se muda para a cidade de Yola, transferido de seu emprego no Banco Central da Nigéria. Os filhos começam, então, a experimentar uma vida com mais liberdade e uma de suas aventuras é pescar no rio Omi-Ala, que corta a cidade de Akure, onde moram.
Em uma de suas visitas à família, ao saber da pescaria dos filhos, o pai os castiga pesadamente. A partir desse episódio, opera-se uma transformação no comportamento do filho mais velho, Ikenna. Mais tarde, saberemos que a metamorfose de Ikenna está também ligada a um encontro com Abulu, o louco. É daí em diante que “o mundo se despedaça”, como nos conta o narrador, Benjamin (Ben), o mais novo dos pescadores.
Para quem já leu o livro de Chinua Achebe, não há como escapar das comparações, pelo menos no plano macro dos enredos. Ambos os textos tratam da corrosão interna dos indivíduos, cuja centelha se inicia no mundo exterior, ainda que a força externa tenha pesos diferentes em uma e em outra obra.
Há ainda os temas históricos, geopolíticos e culturais. Em O mundo se despedaça, o colonialismo é um operador relevante e perturbador da pretensamente inabalável fortaleza psíquica e moral de Okonkwo. O sistema colonial invade a ordem social do povo ibo e vai sobrepujando suas estruturas e prensando sobre elas uma nova ordem social.
Os pescadores traz já uma Nigéria dos fins do século XX. País artificialmente forjado a ferro, fogo e sangue, colocando nações diversas sob uma mesma bandeira. O povo ibo está presente na família dos meninos pescadores, vivendo apartada de suas origens por conta dos sangrentos confrontos civis do passado recente (fins dos anos 1960). Também as disputas de poder nos anos 1990, igualmente violentas, perpassam por esta extraordinária narrativa.
O autor ainda recorda o triunfo da seleção nigeriana de futebol nos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996 (resultado não tão feliz para os torcedores brasileiros). O episódio futebolístico surge imediatamente antes de um momento crucial da obra, o clímax, por assim dizer.
Interessante notar ainda, no livro, a mística da cultura ocidental como símbolo de superioridade e o poder aculturador indelével do colonialismo. O pai dos pescadores, James Agwu, sonhava para os filhos uma educação ocidental, segundo ele, superior. Desejava enviar os filhos ao Canadá, para estudarem com pessoas brancas. Esta passagem do livro é, talvez, a única em que fica marcada a “oposição” brancos e negros, atribuindo-se maior valor ao primeiro grupo. A dimensão das discussões raciais nas obras literárias muito provavelmente encontra-se mais presente nas literaturas de países que passaram por processos escravagistas e segregacionistas, como é o caso das Américas e da África do Sul.
No mais, não há como revelar muito sobre a história em si, para não estragar a experiência dos futuros leitores. Trata-se de uma obra que nos faz refletir sobre o poder de influência do mundo exterior sobre nossa própria consciência; sobre como nos deixamos envenenar pelos medos. E sobre como o mundo, o nosso mundo interior, pode se despedaçar.
Leia também: O mundo se despedaça, de Chinua Achebe
Título: Os pescadores
Autor: Chigozie Obioma
Tradução: Claudio Carina
Editora: Globo Livros
Páginas: 272
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